A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio: resumo e estudo do livro

Escrito durante o governo de Rodrigues Alves, A Alma Encantadora das Ruas talvez seja o livro mais conhecido de João do Rio. É seu terceiro livro e foi publicado em 1908, revelando um autor que apreendia a psicologia urbana e o espírito da época com a mesma obsessão dos colecionadores. Ele saturava seus textos de reminiscências decadentistas, mas o olhar que fixava no presente era o de um observador deslumbrado, onde vê as novas relações sociais que se desenham no coração daquela que seria mais tarde chamada de Cidade Maravilhosa. A obra conta a vida de uma cidade em transformação, na qual coabitam personagens e espaços que, ao mesmo tempo que sobrevivem, já não existem como antes. 

1. Breve relato

No início do século, iluminada pelas primeiras luzes da modernidade, o Rio de Janeiro já se revelava, aos olhos mais sensíveis, como uma cidade multifacetada, fascinante, efervescente na democracia das ruas.

As crônicas de A Alma Encantadora das Ruas mostram o significado e a própria essência da rua na modernidade. O homem não é qualquer um, mas o que vive no espaço urbano. Numa relação dupla, a sociedade faz a rua e esta faz o indivíduo:

“Há suor humano na argamassa do seu calçamento.”

“Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos.” (A rua)

A essência da identidade carioca já está presente nas linhas críticas e bem-humoradas de João: a capacidade de criar soluções de sobrevivência, a paixão pela música, a riqueza do imaginário social, a espontaneidade da mistura cultural que constitui hoje a maior riqueza não apenas do Rio, mas de todo o Brasil.

O livro aborda questões alijadas da sociedade, como os trabalhadores, as cadeias e ladrões, unindo os fragmentos do Rio de Janeiro da época. As crônicas-reportagens da obra encenam o que mancha o projeto da cidade da virtude civilizada, que a ordem racional planejou (a cidade ideal); ganham o palco da escrita aspectos da antitética cidade do vício, símbolo e estigma dos males sociais.

O que mais espanta nessa obra singular, mais ainda do que o brilhantismo do estilo, é a sua homogeneidade, ainda mais quando sabemos que é uma antologia de textos publicados anteriormente pelo autor entre 1904 e 1907 no jornal A Gazeta de Notícias e na revista Kosmos. No entanto, tudo flui tão naturalmente que temos a ilusão de estar lendo um livro escrito de um fôlego só.

2. As partes da obra

O livro é composto por 27 crônicas divididas em cinco blocos e inclui, na abertura e encerramento, duas conferências proferidas pelo autor em 1905.

1. A rua: Aqui, o autor afirma, em uma crônica, que a rua é ‘agasalhadora da miséria’ e personifica esse espaço, faz analogias entre a rua e o ser humano.

2. O que se vê nas ruas: São treze crônicas abordando pequenas profissões que perambulavam pelas ruas da cidade na virada do século: tatuadores, vendedores de livros e orações, músicos ambulantes, cocheiros, pintores de tabuletas de lojas comerciais e paisagens de parede de botequim; e também as festas populares da Missa do Galo, Dia de Reis e Carnaval.

3. Três aspectos da miséria: Seis crônicas sobre mulheres, crianças e operários que mendigam. A sensibilidade do autor fica evidente em textos como “As mariposas do Luxo”, que aborda o desejo de mulheres simples diante das vitrines da rua do Ouvidor. Em “Sono calmo” expõe o sofrimento de pessoas dormindo em pensões como animais, verdadeiros ‘entulhos humanos’. São abordadas as condições de trabalho dos operários e a mendicância.

4. Onde termina a rua: Seis crônicas sobre a situação dos presos em cadeias sem condições de recuperar os detentos. Os textos falam sobre “Os crimes de amor”, “A galeria superior”, “O dia de visitas”, “Os versos dos presos”.

5. Musa das ruas: É uma reportagem sobre versos populares. O cronista valoriza o lirismo do povo ao mesmo tempo que faz críticas aos parnasianos e simbolistas. O romântico Álvares de Azevedo é elogiado pelo autor.

3. Temática

Em nenhum outro livro a cidade do Rio de Janeiro aparece tão nitidamente, a ponto de dizermos que nele, a cidade é a protagonista da cena. E, mais importante, nesta obra vemos o amadurecimento da linguagem de João do Rio, a ponto de dizermos que um novo estilo literário é criado. Neste caso, a forma como o escritor capta e procura descrever a cidade, certamente representa aspecto fundamental para a compreensão deste amadurecimento estilístico. Em outras palavras, a cidade, em sua estrutura e em seus níveis de sociabilidade, influencia a criação de um novo estilo literário: o ritmo das crônicas ganha agilidade e variedade, a dicção se aproxima do prosaico para conservar o lirismo (um modo de realçar o que há de “encantador” nas ruas).

Neste livro, vemos João do Rio como o escritor que, reunindo as qualidades do flâneur (“Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem […] Flanar é a distinção de perambular com inteligência […] O flâneur […] acaba com a idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio […]. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete […]. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas”) e do dandy, se sente seduzido pelo mundo que as ruas lhe oferecem, onde nasce um tipo de sentimento inteiramente novo e arrebatador, que carece de compreensão e vivência: o mundo encantador das ruas.

As crônicas-reportagens de A Alma Encantadora das Ruas são na verdade convites para acompanhar João do Rio em suas perambulações pelas ruas do Rio de Janeiro, são convites à “flanar” juntamente com ele, através de seu estilo, por sua visão de mundo. Um passeio poético pela “decadência exuberante” da capital da República.

Convidado a “flanar” com o narrador, o leitor penetra nos fragmentos da cidade, cuja alma configura um mosaico irredutível e imiscível, no qual o tipo urbano não é um simples produto de sua variedade mas a essência que a constitui. O que intriga ainda hoje ao ler estas páginas, não é perceber a acuidade de seu Autor, o modo como capta certas particularidades do momento histórico que o inspirou, mas perceber que tais particularidades são transformadas em linguagem literária, em estilo de escrita – traço que garante o prestígio de João do Rio.

Os títulos mapeiam a cidade como um todo, a partir deles tomamos a cidade inteira nas mãos, neles estão a medição sensível e atenta da cidade: “Pequenas profissões”, “Os tatuadores”, “Os mercados de livros e a leitura das ruas”, “Tabuletas”, “Músicos ambulantes”, “Visões d’ópio”, “As mariposas do luxo”, “Os trabalhadores de estiva”, “Crimes de Amor”, “A galeria superior” etc. Para compreender melhor a variedade, a heterogenia, a multiplicidade de contextos que brotam da realidade da cidade, destacamos pequenos fragmentos:

“Os tatuadores”: “As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis idéias de perversidade e de amor. Um corpo desses nu, é um estudo social.”

“Os trabalhadores da estiva”: “Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos – de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo e, assim encolhidos, com as mãos nos bolsos pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia.”

“Fome negra”: “[…] uma gente que servia às descargas de carvão e minério. Seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter idéias. […] Uma vez apanhados pelo mecanismo de aço, ferros e carne humana, uma vez utensílio apropriado ao andamento da máquina, tornam-se autômatos com a teimosia de objetos movidos à vapor. Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm músculos hipertrofiados. […] Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos capitalistas poderosos, o dinheiro, que os recurva em esforços desesperados, lavados de suor para que os patrões tenham carros e bem-estar.”

“Urubus”: “- Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo.”

4. Características do autor

Funde literatura e jornalismo investigativo num texto marcado pelo lirismo e capacidade de observação. O autor escreve suas crônicas na suposição de existir mesmo a tal “alma encantadora das ruas” e esperando compreender sua psicologia e seu mistério. Percebemos que o autor estabelece uma contraposição clara entre o espaço da rua e o da casa. Se nesta prevalece a ordem e o equilíbrio, na rua destaca-se o imprevisto e o caos.

As crônicas foram escritas ao tempo do Presidente Rodrigues Alves quando o Rio era Capital Federal. Nesse período, o prefeito Pereira Passos civilizava a cidade. Os textos estão carregados de seres desumanizados que sobrevivem em pensões, cadeias, depósitos de carvão. Estão mutilados pelo crime e pela miséria. Apesar disso, o autor abre espaço para o lirismo, as tradições populares, os cordões carnavalescos.

5. Crônica e jornalismo

Descrever a vida carioca implicava não esconder os problemas da urbanização, como a miséria e a formação das favelas. Foi na conciliação do trabalho de repórter com a mão de escritor que João do Rio pôde fazer com que a crônica avançasse como gênero, e ele foi saudado como um de seus renovadores. Veja-se o exemplo de “A Fome Negra”, um dos textos-reportagem do livro, sobre operários que trabalham com carvão e manganês: “Vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e uma camisa-de-meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro; o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos capitalistas poderosos (…) esses pobres entes fizeram-me pensar num pesadelo de [W. G.] Wells, a realidade da História dos Tempos Futuros”.

O cruzamento do texto jornalístico com o literário não gerou em prejuízo de nenhuma instância; pelo contrário, o objetivo de reportar a realidade ficou engrandecido pelo tom emotivo. Em outro texto, “Visões d’ópio”, é nos chineses fumadores de ópio que incide a investigação detalhista do escritor. Para alguns, ele fazia “a história das minorias”.

A cada texto do livro, João do Rio revela um domínio raro de descrição. No antológico “A Rua”, ele faz um belo e comovente tributo às ruas da sua cidade e de como elas parecem impregnadas de sentidos próprios, de uma vida particular: “Oh! Sim, as ruas têm alma. Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira”. Aqui, o espírito do “flâneur literário”, daquele que anda a vagar pela cidade, domina magistralmente a crônica. Esse andarilho prestará atenção nos personagens do centro, nos profissionais de todo tipo, naqueles que saltavam aos seus olhos atentos.

Fontes [1] [2] [3] [4]

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