A Hora da Estrela, de Clarice Lispector: resumo e estudo do livro

1. Breve relato
Macabéa (Maca) foi criada por uma tia beata, após a morte dos pais quando tinha
dois anos de idade. Acumula em seu corpo franzino a herança do sertão, ou seja,
todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheia de si e da
sociedade. Segundo o narrador, ela nunca se deu conta de que vivia numa
sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável.

Ignorava até mesmo porque se deslocara de Alagoas até o Rio de Janeiro, onde
passou a viver com mais quatro colegas na Rua do Acre.
Macabéa trabalha como datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, que
fica na Rua do Lavradio. Tem por hábito ouvir
a Rádio Relógio, especializada em dizer as horas e divulgar anúncios, talvez
identificando com o apresentador a escassez de linguagem que a converte num ser
totalmente inverossímil no mundo em que procura sobreviver. Tinha como
alvo de admiração a atriz norte-americana Marilyn Monroe, o símbolo social
inculcado pelas superproduções de Hollywood na década de 1950.

Macabéa recebe de seu chefe, Raimundo Silveira, o aviso de que será despedida por
incompetência. Como Macabéa aceita o fato com enorme humildade, o chefe se
compadece e resolve não despedi-la imediatamente.

Seu namorado, Olímpico de Jesus, era nordestino também. Por não ter nada que
ajudasse Olímpico a progredir, ela o perde para Glória, que possuía atrativos
materiais que ele ambicionava.

Glória, com certo sentimento de culpa por ter roubado o
namorado da colega, sugere a Macabéa que vá a uma cartomante, sua conhecida.
Para isso, empresta-lhe dinheiro e diz-lhe que a mulher, Madame Carlota, era tão
boa, que poderia até indicar-lhe o jeito de arranjar outro namorado. Macabéa
vai então à cartomante, que, primeiro, lhe faz confidências sobre seu passado
de prostituta; depois, após constatar que a nordestina era muito infeliz,
prediz-lhe um futuro maravilhoso, já que ela deveria casar-se com um belo homem
loiro e rico – Hans – que lhe daria muito luxo e amor.

Macabéa sai da casa de Madame Carlota ‘grávida de futuro’,
encantada com a felicidade que a cartomante lhe garantira e que ela já começava
a sentir. Então, logo ao descer a calçada para atravessar a rua, é atropelada
por um luxuoso Mercedes amarelo. Esta é a hora da estrela de cinema,
onde ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”.

Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje é
o primeiro dia de minha vida: nasci”
. Há uma situação paradoxal: ela só
nasce, ou seja, só chega a ter consciência de si mesma, na hora de sua morte.
Por isso antes de morrer repete sem cessar: “Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”

Por ter definido a
sua existência é que Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos transeuntes
entende: “Quanto ao futuro.” (…) “Nesta hora exata Macabéa sente um fundo
enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar
algo luminoso. Estrela de mil pontas.”

Com ela morre também o narrador, identificado com a escrita do romance que se
acaba.


2. Análise da obra

“A Hora da Estrela”
é também uma despedida de Clarice Lispector. Lançada pouco antes de sua morte em 1977, a obra conta os momentos de criação do escritor Rodrigo S. M. (a própria Clarice) narrando a história de Macabéa, uma alagoana órfã, virgem e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa.

É pelos olhos do narrador e através de seu domínio da palavra que a existência e a essência são expostas como interrogações. Tal presença masculina retrata um universo de fragmentos, onde o ser humano não é respeitado, mas desacreditado nessa reconstrução de uma realidade mutilada.

Em
“A Hora da Estrela”
Clarice escreve sabendo que a morte está próxima e põe um pouco de si nas personagens Rodrigo e Macabéa. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de ouvir a Rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, como Clarice.

A despedida de Clarice é uma obra instigante e inovadora. Como diz o personagem Rodrigo, estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. É Clarice contando uma história e, ao mesmo tempo, revelando ao leitor seu processo de criação e sua angústia diante da vida e da morte.

Em “A Hora da Estrela”, ficam visíveis algumas das principais
características dos autores da terceira fase modernista no Brasil
(posteriores aos romances regionalistas), como a utilização de análise
psicológica mais aprofundada dos personagens, que revela, por meio da
narrativa interior, o fluxo de consciência e o intimismo. No plano
formal, há a preocupação por uma linguagem mais elaborada, com a
presença das digressões, o uso inusitado da pontuação, ou mesmo sua
ausência, as metáforas e a metalinguagem. 

A estrutura da obra tem três grandes eixos narrativos e simultâneos, o
que torna o enredo fragmentado e quebra a tradicional construção linear.
A primeira narrativa tem Rodrigo S.M. relatando a história de Macabéa; a
segunda mostra o narrador falando das próprias experiências e do drama
existencial que vive; na terceira, vemos o próprio processo de
construção da obra, o que caracteriza a metalinguagem. 


3. Estrutura da obra

É uma obra composta de três histórias que se entrelaçam e que são marcadas, principalmente, por duas características fundamentais da produção da autora: originalidade de estilo e profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente comuns.

A linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e outras figuras de estilo. Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da autora a construção de frases inconclusas e outros desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.


4. Tempo e Espaço

O Rio de Janeiro é o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O “lado de dentro”das criaturas é o que interessa aos intimistas.

Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já havia morrido – possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos – mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.

Embora a história de Macabéa seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito humor e ironia. O próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia (tragicomédia).


5. Foco narrativo

Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a palavra e o fazer narrativo. Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a ‘Dedicatória do autor’, aparecem os treze títulos que teriam sido cogitados para o livro. Veja a passagem:

A culpa é minha
ou
A Hora da Estrela
ou
Ela que se arranje
ou
O direito ao grito
Quanto ao futuro
ou
Lamento de um blue
ou
Ele não sabe gritar
ou
Uma sensação de perda
ou
Assovio no vento escuro
ou
Não posso fazer nada
ou
Registro dos fatos antecedentes
ou
História lacrimogênica de cordel
ou
Saída discreta pela porta dos fundos

O recurso usado por Clarice Lispector é o narrador-personagem, pois conforme nos faz conhecer a protagonista, também nos faz conhecê-lo. Ele escreve para se compreender. É um marginalizado conforme lemos: “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos homens”. Quanto à sua relação com Macabéa, ele declara amá-la e compreendê-la, embora faça contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.

Macabéa, a protagonista, é uma invenção do narrador com a qual se identifica e com ela morre. A personagem é criada de forma onisciente (tudo sabe) e onipresente (tudo pode). Faz da vida dela um aprendizado da morte. A morte foi a hora de estrela.

O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas do passado para o presente e vice-versa.

Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:

a) a metanarrativa – Rodrigo S. M. conta a história de Macabéa: Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua.

b) A identificação da história do narrador com a da personagem – Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos. Se por um lado, ele vê a jovem como alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe, de gênero e de consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e Macabéa se confundem.

c) A vida de Macabéa – O narrador conta como tece a narrativa.

Narrador e protagonista, inseridos em uma escrita descontínua e imprevisível, permitem ao leitor a reflexão sobre uma época de transição, de incoerência, como um movimento em busca de uma nova estruturação da obra literária similar à insegurança, à ansiedade e ao sofrimento. O tema é oferecido, socializando a possibilidade de ruptura.

O narrador revela seu amor pela personagem principal e sofre com a sua desumanização, mas, também, com a própria tendência em tornar-se insensível.

O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa. O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica
alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações. 

A “Hora da Estrela” representa o momento epifânico de Macabéa: a hora da
morte. É irônica porque só no momento da morte é que Macabéa alcança a
grandeza do ser. Já a autora atinge a epifania ao concluir a obra. É a
epifanização do tormento de escrever. 


6. Personagens 

Macabéa: Alagoana, 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela (sobre a cabeça, com força); completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. A principal característica de Macabéa é a sua completa alienação. Ela não sabe nada de nada. Feia, mora numa pensão em companhia de 4 moças que são balconistas nas Lojas Americanas (Maria da Penha, Maria da Graça, Maria José e Maria). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista da história. Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles. A personagem principal do livro mal tem consciência de existir, mas tem um desejo: tornar-se estrela de cinema, e admira com certa dose de melancolia Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa forma, acaba conseguindo realizar o seu sonho: a hora da estrela condiz com o momento de sua morte. 

Olímpico: imigrante nordestino assim como Macabéa, Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava como “operário”: era um “metalúrgico”. Ambicioso, orgulhoso, matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia. 
 Possuidor de um dente de ouro, o qual muito estimava por ser demonstrador de poder, sonhava em um dia ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue. Em uma parte do livro Olímpico namora Macabéa.

Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final.

Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo.
Amiga de trabalho (e a única) de Macabéa, possuía todo o charme e “carnes” que a outra não tinha. “Carioca da gema” (razão forte pela qual Olímpico atrai-se por ela). Em uma passagem do livro, há uma ótima descrição da personagem: Glória possuía no sangue um bom vinho
português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do
sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da
mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes
estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que
significava um degrau a mais para Olímpico. (…) apesar de feia,
Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa
qualidade
.”

Glória roliça, branca e morna. Tinha um
cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os
pêlos das pernas cabeludas e das axilas que não raspava. Olímpico:
será que ela é loura embaixo também?

 

Madame Carlota: É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para “ler a sorte”de Macabéa. Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons, diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa. Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar.
 Trata a protagonista com um carinho que ninguém jamais
dirigiu à protagonista. “Era enxundiosa, pintava a boquinha
rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de
ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado.
” Tornara-se cafetina quando começara a engordar e perder os dentes. O
narrador coloca Madama Carlota como o ponto alto da existência de
Macabéa, já que seria a informante do seu futuro, que mudaria (e
realmente mudou) a partir do momento em que Maca saísse da casa da
Madama.

Seu Raimundo Silveira: chefe da firma de representante de roldanas, é o responsável pela demissão de Macabéa, pois ela errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel.  Porém  fica comovido com a humildade da moça, resolve não despedi-la imediatamente.

A tia: beata que cria Maca após a morte da mãe menina, quando tinha dois anos de idade. “Muito depois fora com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocoruto de uma cabeça deveria ser, imaginava a tia, um ponto vital. (…) Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual — a tia não se casara por nojo — é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem.

As quatro Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas eram as colegas de quarto da nordestina. As quatro trabalhavam como balconista nas Lojas Americanas. Uma delas vendia pó-de-arroz Coty.

O médico: procurado por Maca, quando, pela primeira vez na vida, fez a audácia de procurar um médico (barato) após o recebimento do salário. “Muito gordo e suado, tinha um tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar. (…) não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.

Motorista da Mercedes: dono do carrão amarelo, alourado e estrangeiro, é quem vai realizar, de certa forma, as previsões de Madama Carlota, atropelando Macabéa que resulta na morte da personagem

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